O trabalho apresentado tem o intuito de abordar as alterações trazidas pela Lei 12.683 de 2012 no tratamento dispensado ao crime de lavagem de dinheiro.
Introdução
O crime de Lavagem de Dinheiro exige, para a sua configuração, que os bens, direitos ou valores introduzidos indevidamente no sistema financeiro sejam oriundos de um delito anterior, classificado como crime antecedente, primário, anterior ou principal.
Em virtude da sua dependência a existência de um delito anterior, o delito de Lavagem de Dinheiro é classificado como crime acessório, secundário ou derivado.
Desde 1998 - ano em que passou a vigorar a Lei 9.613, o sistema jurídico pátrio entendia pela existência de um rol taxativo de condutas antecedentes, ou seja, só os crimes expressamente elencados nos diversos incisos do artigo 1°, da referida lei, serviam como condutas antecedentes.
Qualquer outra conduta, independentemente do seu grau de ofensividade ¹, não tinha o condão de ensejar a configuração do crime consequente de Lavagem de Dinheiro.
A Lei 12.683, de 2012, alterou o conteúdo do citado artigo 1° da Lei 9.613/98. De acordo com os preceitos trazidos pela novel legislação, não há mais a indicação de um rol taxativo de crimes antecedentes para a configuração do crime consequente de Lavagem de Dinheiro.
Diante disso, deixou-se de adotar a segunda geração das condutas antecedentes, passando-se a adotar a terceira geração de condutas antecedentes, onde qualquer infração penal (crime ou contravenção penal) pode ser suficiente para a ocorrência da Lavagem de Dinheiro.
Partindo dessa alteração, pode – se concluir que houve o alargamento quanto à aplicação da Lei 9.613/98, porque atualmente são abarcados por esta lei todos os crimes consagrados no ordenamento jurídico pátrio, além das contravenções penais, que anteriormente não o eram.
Por fim, a alteração legislativa operada pela Lei 12.683/12 ocorreu por iniciativa da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, no mesmo período em que tramitava no Congresso Nacional a “CPI do Cachoeira”.
Como é notório, referida comissão parlamentar de inquérito foi objeto de maciça cobertura pelos meios de comunicação, e o legislador, aproveitando-se desta, optou pela imposição de um agravamento à conduta de lavagem de capitais, ou, melhor dizendo, optou pela expansão do rol de condutas antecedentes que abarcam a posterior lavagem de dinheiro, tudo isso sob os “holofotes” proporcionados pela repercussão da investigação.
Face a essa evidente influência da mídia na formulação do texto legislativo, também há o desenvolvimento, mesmo que sucinto, das razões e consequências político – criminais da utilização da doutrina classificada como populismo penal midiático.
1. Breve Escorço Histórico
Para que se faça a conceituação do termo lavagem de dinheiro é necessário, também, que se faça a digressão histórica quanto à origem do instituto.
A vida em sociedade, desde os primórdios da humanidade, depende da existência da moeda com valor econômico como instrumento apto à formalização dos diversos negócios feitos.
É certo também, que alguns negócios são feitos em perfeita consonância com os ditames legais, contudo, alguns negócios são feitos em desacordo com o estabelecido em lei, e, mesmo dispondo deste caráter ilícito, estes negócios apresentam lucros.
Dos lucros oriundos das atividades ilícitas chegamos ao grande intuito dos praticantes da lavagem de dinheiro: Dar a bens, direitos ou valores de origem ilícita a aparência de licitude, fazendo com que estes circulem na economia em patamar de igualdade com os bens, direitos ou valores de proveniência regular.
E assim como a existência de determinados instrumentos dotados de valor econômico, aos quais se deu a função de moeda, é datada nos primórdios da vida em sociedade, a prática de crimes e obtenção de ganhos com estes também vem de longa data.
Diversos doutrinadores tratam do tema e apontam os mais variados mecanismos ao longo da história utilizados para dar aparecia lícita a bens oriundos de atos ilícitos.
Marco Antônio de Barros ² leciona:
Acontecimentos remotos do século passado são anotados pela literatura como sendo fatos embrionários desta modalidade criminosa. Um deles é o caso de Alphonse (Al ) Capone, filho de imigrantes italianos provindos da região de Nápoles, nascido em Nova York (...) menciona-se, também, o comportamento de outro norte- americano, Meyer Lansky, o qual passou a ocultar os lucros ilícitos em banco suíço, a partir de 1932.
Sérgio Fernando Moro ³ citando diversos doutrinadores diz: que tal expressão teria sido cunhada nos Estados Unidos na primeira metade do século XX, na década de 20, como referência à aquisição de lavanderias por grupos mafiosos para ocultar o produto de seus crimes.
E no transcorrer das décadas seguintes à citada, diversos são o atos praticados com vistas a dar aparência lícita a bens de origem ilícita.
Apesar da longevidade dos atos que consubstanciam na lavagem de dinheiro, a primeira lei que criminalizou referida conduta é a norte-americana 4, que data de 1986, seguida pela legislação francesa, de 1987, e pela argentina de 1989.
Importante ressaltar que Sérgio Moro 5, citando Carla De Carli, diz que a legislação italiana é anterior, pois data de 21.01.1978. Contudo há divergência quanto a esta indicação porque a referência empregada é a do Decreto- Lei 59 – Código Penal Italiano -, onde não há a utilização da terminologia Lavagem de Dinheiro.
No Brasil a Lavagem de Dinheiro foi criminalizada em 03.03.1998, através da Lei 9.613, de 1998, sendo alterada em 09.07.2012,
pela Lei 12.683.
Partindo da premissa que a Lei 9.613, de 1998, surgiu com pelo menos 10 (dez) anos de atraso em relação às legislações dos países percussores no assunto, chega-se a falsa crença que no Brasil não havia o cometimento de infrações penais, e, consequentemente, não havia a conversão de ativos ilícitos em supostamente lícitos.
Ocorre que nas décadas de 70 e 80, no Brasil, a criminalidade ainda não se mostrava muito organizada, fator que reverberava na inexistência de lucros em quantidade suficiente a motivar a ocultação ou a dissimulação da origem ilícita destes bens.
Ademais, a globalização iniciava a sua expansão, contudo fatores econômicos internos não tornavam o Brasil um país atrativo ao “capital sujo” estrangeiro.
A fundamentar este posicionamento, há lição de Marco Antônio de Barros:
Em relação ao Brasil, pode-se dizer que até 1990 a nossa economia não era considerada atrativa para a lavagem de capitais, pois, em períodos de alta inflação ela deixa de ser vantajosa ante a desvalorização da moeda. Foi a partir da abertura internacional de nossa economia (ocorrida no governo Collor) e com a posterior implantação do Plano Real, que trouxe estabilidade à moeda e ainda aqueceu o mercado com altas taxas de juros, que o nosso País tornou-se um ambiente favorável aos olhos dos lavadores de ativos sujos”.
1. Do Conceito de Lavagem de Dinheiro:
Inicialmente, faz-se necessária a indicação à notória discussão quanto ao bem jurídico penal tutelado pela lavagem de dinheiro.
Em um primeiro diapasão é a manutenção da ordem socioeconômica 6 , consagrada no artigo 170, da Constituição Federal.
Referido entendimento está em consonância com a teoria dos bens jurídicos penais constitucionalmente previstos, ou seja, só ensejarão a previsão como norma penal incriminadora aqueles bens cuja tutela também esteja expressamente consagrada na Carta Magna.
Há um segundo entendimento que defende que o bem jurídico penal tutelado pela lavagem de dinheiro é o mesmo bem jurídico tutelado pelo crime antecedente.
Um terceiro posicionamento defende que a Lei da Lavagem de Dinheiro visa tutelar a Administração da Justiça, porque o viés principal da conduta é tornar impune um delito já cometido, através da não aplicação do jus puniendi.
O último entendimento7 diz que o crime de Lavagem de Dinheiro é pluriofensivo, por tutelar mais de um bem jurídico, quais sejam: - Ordem Socioeconômica; - Administração da Justiça; - e o bem jurídico dos delitos antecedentes.
A indicação das correntes existentes quanto ao bem jurídico penal tutelado torna-se necessária em virtude do ramo do Direito Penal em que a Lavagem de Dinheiro está inserida.
O Direito Penal Econômico, enquanto espécie do gênero Direito Penal, tem como principal escopo a criação de novos tipos penais que possam eliminar algumas condutas que afetem a estrutura econômica do país.
André Luis Callegari8 diz que com os novos conceitos e a evolução da sociedade no plano econômico e social, pode-se constatar uma progressiva ressonância política e jurídica dos imperativos éticos de solidariedade, sob a mediação de Estado Social. Com os novos interesses a proteger, o Estado passa a preocupar-se com novos ramos de atuação como a saúde, a previdência social, a economia, e etc.
Percebe-se, agora, que a discussão quanto ao bem jurídico penal tutelado pela Lei de Lavagem de Dinheiro ganha relevância, porque os bens tutelados pela referida Lei podem ser inseridos na Ordem Socioeconômica – porque estas condutas afetam o seu controle pelo Estado -, podem ser inseridos na Administração da Justiça – porque esta conduta impede a aplicação do jus puniendi aos que tenham cometido o crime antecedente -, e, por último, podem ser inseridos no rol de crimes antecedentes – porque a ocultação ou dissimulação dos bens de origem ilícita serve como forma de perpetuação da impunidade destes crimes.
Disso, pode-se desprender que a Lavagem de Dinheiro é subespécie do Direito Penal Econômico, servindo como instrumento apto ao combate das novas modalidades criminosas, decorrentes do atual estágio de evolução da sociedade, principalmente aqueles que visam ludibriar o controle da atividade econômica exercido pelo Estado, através do poderes e instrumentos regularmente instituídos, como o Poder Judiciário, a Polícia Judiciária, o Banco Central do Brasil, o COAF, entre outros.
Quanto ao conceito de Lavagem de Dinheiro, adota-se inicialmente os critérios trazidos pelo criminólogo Edwin H. Sutherland 9, conforme tradução de Manuel da Costa Andrade e J.F. Faria da Costa, segundo os quais o crime de “colarinho branco” devem ter 05 (cinco) elementos: “a) ser um crime; b) ser cometido por uma pessoa respeitável; c) esta pessoa pertencer a uma camada social alta; d) estar no exercício do trabalho e, por fim, constituir uma violação da confiança”.
Ainda nesta esteira, BAJO FERNANDEZ10, citado André Luiz Callegari, indica que a criminologia define a criminalidade econômica como sendo “relativa as infrações lesivas a ordem econômica cometidas por pessoas de alto nível socioeconômico no desenvolvimento de sua atividade profissional”.
Partindo dos ensinamentos citados, podemos concluir que no sistema pátrio o legislador empregou a expressão Lavagem de Dinheiro no sentido de purificar ou reabilitar algo inicialmente “sujo”. Daí surge a ideia de dar aparência licita aos bens, direitos ou valores de origem ilícita, fazendo com que estes sejam reinseridos no sistema socioeconômico como se a sua origem fosse licita.
A corroborar este entendimento, há lição de Isidoro Blanco Cordero 11 definido a Lavagem de Dinheiro como o “processo em virtude do qual os bens de origem ilícita são integrados ao sistema econômico legal com aparência de haverem sido obtidos de forma ilícita”. Já Bruno Tizt de Rezende 12 define a Lavagem de Dinheiro na conduta ou nas condutas voltadas a conferir um aspecto de legalidade a bens de procedência criminosa, mascarando a sua origem ilícita, com o propósito de evitar a localização e apreensão desses bens pelo Estado, bem como a identificação do autor da infração penal antecedente.
Há, ainda, o conceito de Marcelo Batlouni Mendroni13 que diz que a Lavagem de Dinheiro poderia ser definida como o método pelo qual um indivíduo ou uma organização criminosa processa os ganhos financeiros obtidos com atividades ilegais, buscando trazer a sua aparência para obtidos licitamente.
E, por último, há o conceito de Marco Antônio de Barros14:
Conclui-se que a conceituação que mais se acomoda ao consenso internacional é aquela que afirma caracterizar-se a lavagem de capitais por uma operação ou por um conjunto de operações comerciais, bancárias ou financeiras que buscam a incorporação, na economia de cada país, de modo transitório ou definitivo, de recursos, bens e valores de origem ilícita para dar- lhe aparência legal.
Diante do exposto, pode-se concluir que o conceito de Lavagem de Dinheiro está intimamente associado à finalidade da (s) lei (s) que visam combatê-la, porque, independentemente da conduta expressa pelo verbo núcleo do tipo, sempre há o intuito de impedir a perpetuação da impunidade do crime antecedente, e, mais ainda, sempre se busca impedir a utilização do sistema socioeconômico como instrumento para o branqueamento de bens, direitos ou valores de origem ilícita.
1. Infração Penal Antecedente como pressuposto necessário da Lavagem de Dinheiro
A Lavagem de Dinheiro, conforme já brevemente indicado, é modalidade de crime classificado como parasitário, acessório, secundário ou derivado.
Tal classificação decorre da exigência quanto à existência de uma infração penal 15 anterior, da qual decorra a origem ilícita dos bens, direitos ou valores submetidos ao processo de ocultação ou dissimulação.
Diante disso, a conduta antecedente é classificada como conduta principal, primária, anterior, ou, conforme já indicado, conduta antecedente.
Toda essa distinção quanto à classificação decorre da importância da conduta antecedente, pois sem a ocorrência desta, o crime conseqüente de Lavagem de Dinheiro não estará configurado.
Uma das principais discussões oriundas das alterações da Lei 12.683, de 2012, decorre da mudança no texto do artigo 2°, parágrafo 1°, da Lei 9.613, de 1998.
Anteriormente, utilizava-se a seguinte redação:
§ 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.
E atualmente a redação é:
§ 1o A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.
Percebe-se que além da alteração quanto à terminologia empregada (anteriormente crime, agora infração penal), também houve o acréscimo de novos elementos.
A inclusão destes deveu-se a consolidação do entendimento segundo o qual a acessoriedade do crime de Lavagem de Dinheiro em relação à conduta antecedente é relativa ou limitada, uma vez que basta que o fato anterior seja típico e antijurídico, independentemente da culpabilidade do autor da infração penal anterior.
Ademais, também é decorrência deste princípio da acessoriedade limitada o entendimento que a existência de meros indícios da ocorrência da conduta antecedente, independentemente da certeza quanto a esta, expressa pelo trânsito em julgado de sentença condenatória, ou, até mesmo, a inexistência de ação penal ou inquérito policial, não impedem a propositura de ação penal pelo cometimento do crime consequente, desde que, o membro do parquet, quando da elaboração da denúncia, apresente elementos de conexão/existência do crime antecedente.
Ainda tratando da autonomia relativa entre o crime antecedente e a consequente Lavagem de Dinheiro, Carla Veríssimo de Carli faz a distinção entre a autonomia material e a autonomia processual.
A referida autora utiliza como argumento para a distinção o inciso II, do artigo 2°, da Lei 9.613, de 1998 e o parágrafo 1°, do mesmo artigo.
Nos ensinamentos dela 16 , a autonomia processual está indicada na redação do inciso II, quando o legislador previu que: “II - independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento” (grifo nosso).
Por fim, a autonomia material está indicada no:
§ 1o A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.
Feita a classificação da infração penal antecedente em relação ao crime consequente de Lavagem de Dinheiro, faz-se necessária a indicação da sua natureza jurídica.
Marco Antônio de Barros 17 , Marcia M.M.Bonfim e Edilson Mougenot Bonfim 18 dizem tratar-se de um elemento normativo do tipo, ou seja, aquele que exige um juízo de valoração por parte de quem analisa a norma, sendo referida valoração atribuída pela própria norma jurídica ou pelas normas ético-sociais.
Portanto, a concepção da infração penal antecedente do crime de Lavagem de Dinheiro depende da análise dos elementos comprobatórios existentes, e, além disso, dependem da realização de um juízo de valoração com vistas à constatação da sua capacidade de inserir produtos de origem ilícita com aparência de licitude na ordem socioeconômica.
Em suma: A alteração trazida pela 12.683, de 2012, teve o escopo de expandir o rol de condutas antecedentes ao crime de Lavagem de Dinheiro, porque atualmente estão inseridos nesta posição não só alguns crimes expressamente elencados nos incisos do artigo 1°, da referida Lei, mas todos os crimes ou contravenções penais previstos no ordenamento jurídico pátrio, porque desde agosto de 2012 a terminologia empregada é a de infração penal.
Por fim, independentemente do grau de lesividade social da infração penal antecedente, a comprovação da sua existência, mesmo que através de indícios, é requisito necessário para a existência da posterior lavagem de dinheiro.
2. Das Gerações do Crime de Lavagem de Dinheiro
Carla Veríssimo de Carli, em excelente artigo sobre o nexo entre a infração penal antecedente e o crime de lavagem de dinheiro19, leciona que o crime de lavagem de dinheiro constitui modalidade de crime em expansão, dividindo, em seguida, esta expansão em duas modalidades.
Uma primeira modalidade é a expansão horizontal20, “que compreende a multiplicação de legislações similares em vários países do mundo, criando um regime global de proibição”.
A segunda modalidade corresponde à expansão vertical, que aprofundou o âmbito de aplicação das legislações que visam à repressão à lavagem de dinheiro, tomando como base o conteúdo da infração penal antecedente.
Referida expansão dá origem à classificação quanto às 03 (três) gerações do crime de lavagem de dinheiro.
No que diz respeito à primeira geração dos crimes de lavagem de dinheiro havia um único crime considerado como antecedente, que era o tráfico de entorpecentes.
A Convenção de Viena, que visava especificamente o combate ao tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, apresentou compromisso para que os seus signatários tipificassem como infração penal a ocultação, dissimulação ou conversão dos bens provenientes do tráfico.
Conforme indicado no escorço histórico do presente, as legislações pioneiras no combate à lavagem de dinheiro – Estados Unidos, França, Argentina e discussão quanto à Italiana – traziam como conduta antecedente somente o tráfico ilícito de entorpecentes.
Quando se faz a análise do contexto histórico em que foram editadas referidas legislações esta opção parece óbvia, porque a época a criminalidade não dispunha de um nível de estruturação como o atual, com exceção ao tráfico de drogas, que já apresentava lucros exorbitantes aos seus praticantes, além de dispor de organização quanto a sua logística, quanto a sua comercialização, e, também, quanto a “aplicação dos seus resultados”.
Todas estas informações são ilustradas por um filme chamado Profissão de Risco21 , onde é retratada a história verídica de um traficante de drogas que opera entre as décadas de 1970 e 1980, na Califórnia.
Com o passar dos anos, a melhor estruturação das organizações criminosas obrigou os órgãos de repressão ao aperfeiçoamento dos seus instrumentos de combate, fato que redundou, entre outros, na ampliação do rol de condutas antecedentes a lavagem de dinheiro.
Primeiro através da Convenção da ONU sobre o crime organizado transnacional, de onde adveio determinação para que os crimes graves, assim considerados aqueles cuja pena máxima seja igual ou superior a 04 (quatro) anos, fossem taxados como condutas antecedentes ao tráfico ilícito de drogas.
A partir disso, alguns países movimentaram-se no sentido de criar uma lista, um conjunto ou um rol de delitos antecedentes, ao qual se atribui a denominação de segunda geração de crimes antecedentes.
Importante frisar que a principal característica desta geração é a taxatividade do rol de condutas antecedentes, ou seja, independentemente da natureza ou da lesividade do crime, é necessária a sua previsão como conduta antecedente.
Conforme explicação posterior, o Brasil adotou essa segunda geração quando da edição da Lei 9.613, de 1998.
O último movimento de expansão vertical, segundo De Carli22, “ocorre quando as legislações de lavagem de dinheiro estendem ao máximo o campo dos delitos antecedentes, para incluir todos aqueles que possam apresentar uma dimensão econômica – essas são as legislações de terceira geração”.
Portanto, a terceira geração consubstanciasse como a amplitude máxima das condutas antecedentes, onde, qualquer infração penal, seja ela crime, seja ela contravenção penal, dará ensejo à ocorrência do crime consequente de lavagem de dinheiro.
Importante frisar que inicialmente pretendeu-se limitar a terceira geração as infrações penais que apresentassem um reflexo socioeconômico, conduto, o legislador no ímpeto de combater a criminalidade, optou não fazer distinção entre qualquer das modalidades de infrações penais.
O Brasil, com o advento da Lei 12.683. de 2012, passou a adotar a terceira geração, de forma indiscriminada, utilizando o termo infração penal na sua concepção mais genérica. A (in) correção da sistemática adotada, seus reflexos e fundamentos serão estudados em capítulo apropriado.
2.1. O artigo 1° da Lei 9.613/98 – Rol taxativo de delitos antecedentes:
Nos capítulos anteriores foi feita menção às gerações do crime de lavagem de dinheiro, havendo, também, a indicação quanto à antiga23 e a atual24 redação do artigo 1°, da Lei 9.613, de 1998.
Importante salientar que com a edição da referida lei, em 03.03.1998, havia menção a um rol taxativo de condutas antecedentes, ou seja, só os crimes expressamente indicados nos 08 (oito) incisos do artigo 1° serviam como condutas antecedentes para a posterior ocorrência do crime de lavagem de dinheiro, adotando-se a chamada segunda geração.
Da redação anterior, alguns aspectos merecem análise.
Em primeiro lugar, a utilização de um rol taxativo ou numerus clausus deve ser feita em consonância com as regras e princípios regentes do Direito Penal, portanto, não eram admitidas as interpretações extensivas ou analógicas.
Disso, podemos concluir que os crimes que não estivessem consagrados no rol taxativo do antigo artigo 1°, independentemente da sua gravidade ou da importância do bem jurídico penal tutelado, não ensejavam a ocorrência da lavagem de dinheiro.
A opção, neste primeiro momento, pela adoção da segunda geração do crime de lavagem de dinheiro foi motivada em critérios político-criminais, evitando-se, nas palavras de Diego Tebet 25 , “massificar a criminalização para abranger uma infinidade de crimes como antecedentes do tipo de lavagem ou de ocultação”.
E ainda: “A configuração do rol dos delitos antecedentes foi precedida por reflexão do legislador. Na exposição de motivos da Lei 9.613/1998 houve o cuidado de se definir ilícitos, de especial gravidade, que funcionam como círculos viciosos relativamente à lavagem de dinheiro e à ocultação de bens, direitos e valores (...) crimes graves e com características transnacionais”.
Na opinião da maioria dos autores pesquisados, resta evidente que a utilização da segunda geração era suficiente para a tutela dos bens jurídicos penais tutelados pela lei, porque, mesmo que indiretamente, a segurança nacional, a Administração Pública, o Sistema Financeiro Nacional, o patrimônio, a liberdade individual, a integridade física e a vida, saúde pública e a paz pública.
A utilização de um rol taxativo de crimes antecedentes impede que crimes de menor gravidade, ou de pequena ofensividade, sejam objetos de condenação pelo prática da lavagem de dinheiro.
Zaffaroni e Batista, citados por Diego Tebet26 utilizam como exemplo a ocorrência de um furto simples, ao afirmarem: “tal figura delitiva (furto simples) pertence à denominada obra tosca da criminalidade, cuja detecção é mais fácil, vez que cometida pelos estratos inferiores da sociedade do ponto de vista socioeconômico, fato este que certamente aumentará as estatísticas de condenação efetiva do crime de lavagem de dinheiro e dará efetividade simbólica à Lei 9.613/1998, revertendo e elevando o percentual atualmente considerado insignificante pelas autoridades (motivo da almejada reforma legislativa)”.
Por último, cabe destacar o fato que os dispositivos expressamente citados nos incisos do artigo 1° devem ser levados em conta em ralação aos fatos praticados sob a sua vigência. É evidente que a redação anterior é mais favorável ao acusado, portanto, ainda que a conduta tenha iniciado ou os seus desdobramentos tenham continuado na lei atualmente em vigor, se o crime principal não constava no rol dos crimes antecedentes, não é possível a imputação da lavagem de dinheiro, em virtude da impossibilidade da retroatividade da lei penal prejudicial ao acusado – artigo 2°, do Código Penal -, e do princípio da anterioridade da lei penal – artigo 5°, inciso XL, da Constituição Federal.
2.2. A lei 12.693/12 – Da utilização do conceito Infração Penal
Com a edição da Lei 12.683, de 2012, a principal mudança ao texto da lei de lavagem de dinheiro diz respeito à utilização do termo infração penal.
Como é de notório conhecimento, o termo infração penal é gênero, do qual são espécies os crimes e as contravenções penais.
Portanto, desde agosto de 2012, qualquer infração penal, seja ela crime, seja ela contravenção penal, servirá como conduta antecedente para a posterior de lavagem de dinheiro, independentemente da sua gravidade ou independentemente da sua lesividade.
Inúmeras são as críticas à adoção da terceira geração, sendo a principal delas quanto à desproporcionalidade entre o preceito penal secundário da infração penal antecedente e o da posterior lavagem de dinheiro.
Cita-se, a título exemplificativo, o sujeito que comete a exploração de jogo de azar, e posteriormente oculta ou dissimula a origem 12.683, de 2012, tinha como cerne principal a inserção do jogo do bicho como conduta antecedente à lavagem de dinheiro.
Como é notório, no ordenamento jurídico pátrio a exploração do jogo do bicho está inserida no rol de contravenções penais, conforme previsão do artigo 58, da Lei 3.688, de 1941.
Portanto, desde a confecção do projeto de lei, em 2003, até a edição da lei 12.683, de 2012, o objetivo primeiro era a repressão a ocultação ou a dissimulação dos bens, direitos ou valores oriundos da exploração do jogo do bicho.
Por mais que não haja discussão quanto à alta lucratividade decorrente da prática desta conduta, e o fato de, durante muitas décadas, os seus praticantes – “bicheiros”- terem sido os grandes líderes da chamada criminalidade organizada, resta evidente que o legislador equiparou a esta todas as outras contravenções penais, as quais não apresentam estas mesmas características.
Percebe-se que o legislador, com a falta de lógica que lhe é contumaz, preferiu dar um tratamento mais gravoso a dezenas de infrações penais, ao invés de criminalizar a exploração do jogo de bicho, e inserindo esta conduta no rol de crimes antecedentes à lavagem de dinheiro.
Ou, mais simples ainda: inserir no artigo 1°, da Lei 9.613, de 1998, a expressão infração penal, e a contravenção penal da exploração do jogo do bicho em um dos incisos do referido artigo, conduto permanecendo utilizando um rol exaustivo, sem prejudicar a sistemática da política criminal.
Ademais, quando da ampliação do rol de condutas antecedentes, o legislador deixou de respeitar o compromisso assumido através da Convenção de Palermo, onde há a indicação que os crimes antecedentes devem ser aqueles cuja pena máxima seja igual ou superior a 04 (quatro) anos.
Diante do exposto, resta evidente que o legislador, mais uma vez, agiu de forma açodada, sem atentar aos critérios impostos para a criminalização de determinada conduta, e, conforme indicação posterior, o fez com vistas a dar uma “resposta” ao pleito dos meios de comunicação, no calor de notória comissão parlamentar de inquérito.
3. Ampliação do âmbito de aplicação do tipo penal: Admissibilidade da aplicação do dolo eventual (Teoria da Cegueira Deliberada)
Como já amplamente citado no presente, a principal mudança oriunda da Lei 12.683, de 2012, foi à inserção da infração penal como conduta antecedente à lavagem de dinheiro, expandindo consideravelmente o âmbito de aplicação do tipo penal previsto no artigo 1°, da Lei 9.613, de 1998.
Desde então, qualquer infração penal, independentemente da ausência de lesividade decorrente da sua prática, enseja a posterior prática da lavagem de dinheiro, gerando uma enorme incoerência, especialmente em relação aos princípios norteadores da aplicação do Direito Penal.
A primeira crítica a esta expansão leva em conta a ausência de razoabilidade quanto aos critérios escolhidos, dispondo que o legislador deveria ter encontrado um critério intermediário29, ao invés de igualar as hipóteses menos graves às hipótese mais graves.
Quanto a expansão do Direito Penal, Jésus María Silva Sánchez 30 , em sua consagrada obra La expansión del Derecho Penal – Aspectos de la Política criminal em las sociedades postindustriales, leciona que31:
O que interessa relevar, neste momento, é que ainda existe espaço para uma expansão razoável do Direito Penal. Ainda que exista a mesma convicção segura que várias são as manifestações da expansão sem razoabilidade do Direito Penal. A título puramente exemplificativo: a grande entrada de capital procedente de atividades delitivas (seguramente do tráfico de drogas) em um determinado setor da economia provoca uma profunda desestabilização deste, com importantes repercussões lesivas.
É, portanto, razoável, que os responsáveis por injetarem grande quantidade de dinheiro de origem ilícita no mercado sejam penalmente responsabilizados pelo cometimento de crime contra a ordem econômica. Agora, não é mais razoável a sanção de qualquer conduta praticada através da utilização de pequenas (ou médias) quantidades de dinheiro ilícito na aquisição de bens ou no pagamento de serviços. A tipificação da lavagem de dinheiro é uma forma de expansão razoável do Direito Penal (no seu núcleo, que dispõe de alcance limitado) e da expansão sem razão do mesmo ( nas condutas restantes, não se pode afirmar em absoluto que, uma por uma, são capazes de lesionar a ordem econômica de modo relevante).
Estas informações deixam evidente: houve a ampliação do âmbito de aplicação do crimes de lavagem de dinheiro, em virtude da alteração do rol taxativo para a utilização do conceito de infração penal.
Outra alteração, não menos criticável, e que também teve o condão de expandir consideravelmente a aplicação da lavagem de dinheiro, foi à operada ao artigo 1°, parágrafo 2°, inciso I, da Lei 9.613, de 1998.
Isso porque antes da alteração a redação do inciso citado era: “I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo” (grifo nosso).
Percebe-se nitidamente que para a prática da conduta equiparada era necessária a presença do dolo direto, que corresponde32: “a uma pretensão de realização do resultado típico que resulta explicitada nas circunstâncias em que se desenvolve a conduta e que é capaz de identificar um intenso compromisso para com a produção do resultado”.
Em suma: da conduta deveria ser extraída a vontade livre e consciente com vistas à produção de determinado resultado.
Desde 2012, a redação do referido inciso passou a ser: “I - utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”.
Em comparação a redação anterior, resta evidente que a certeza quanto à origem ilícita não mais é elemento do tipo penal, portanto, deixou-se de adotar o dolo direito, que depende da vontade livre e consciente, e passou-se a adotar o dolo eventual.
São elementos do dolo eventual a previsibilidade da produção do resultado a assunção do risco pelo sujeito ativo e a sua indiferença em relação a este, portanto, como a própria denominação indica, o elemento subjetivo do tipo é baseado na eventualidade da produção do resultado.
Os defensores desta teoria entendem que, quando o sujeito ativo do crime de lavagem de dinheiro dispõe de elementos mínimos para desconfiar da origem ilícita dos bens, direitos ou valores, e mesmo assim dá destinação econômica a estes, estará caracterizada a conduta equiparada no inciso I, do parágrafo 2°.
Referido posicionamento é fundamentado na eventualidade desta modalidade de dolo. Em um raciocínio simplista: Caso o sujeito ativo tivesse condições de prever a origem ilícita dos bens, e mesmo assim realiza-se qualquer transação comercial, denotando sua indiferença em relação ao cometimento de eventual lavagem de dinheiro, o crime restará caracterizado.
Como forma de aperfeiçoamento na aplicação do dolo eventual em relação ao crime de lavagem de dinheiro, a doutrina propõe a utilização da teoria da cegueira deliberada33 , nos casos onde há o desconhecimento intencional ou construído dos elementos que compõe o tipo penal, ou a aplicação das regras inerentes à culpabilidade, que não pode ser em menor grau quando o agente poderia e deveria conhecer a origem ilícita, e mesmo assim opta pela ignorância.
Pierpaolo Bottini34, em excelente artigo sobre a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada nos crimes de lavagem de dinheiro, especialmente quando do julgamento da Ação Penal 470, pelo Supremo Tribunal Federal, diz que:
Trata-se de instituto de origem jurisprudencial norte-americana pelo qual se aceita como dolosos os casos em que o agente se coloca em uma situação proposital de erro de tipo. Assim, tem dolo de lavagem de dinheiro não apenas o agente que conhece (dolo direto) ou suspeita (dolo eventual) da origem ilícita do capital, mas também aquele que cria conscientemente uma barreira para evitar que qualquer suspeita sobre a origem dos bens chegue ao seu conhecimento.
Para ilustrar: se o diretor financeiro de uma instituição bancária determina expressamente a seus gerentes que não o informem de operações suspeitas de lavagem de dinheiro, poderá ser condenado pela prática desse crime, por cegueira deliberada, pois criou conscientemente um mecanismo que veda a chegada ao seu conhecimento de qualquer dúvida sobre a licitude dos bens que processa.
A nosso ver, se a admissão do dolo eventual na lavagem de dinheiro já parece pouco recomendável, seu reconhecimento na forma de cegueira deliberada parece ainda menos adequada a um sistema penal pautado pelo princípio da culpabilidade.
No entanto, a cegueira deliberada foi ao menos tangenciada por integrantes do STF, nos autos da Ação Penal 470, apontando para sua possível admissão no cenário jurídico nacional.
Resta evidente, portanto, que há uma tendência pela admissibilidade da aplicação da teoria da cegueira deliberada em relação aos delitos de lavagem de dinheiro.
Esta tendência é fundamentada no posicionamento do Supremo Tribunal Federal que, mesmo analisando fatos perpetrados antes da vigência da Lei 12.683, de 2012 - que claramente optou pela utilização do dolo eventual-, entendeu pela utilização da referida teoria, havendo inclusive menção a esta alteração no acórdão da referida ação.
Feita esta distinção, faz-se importante a indicação dos 03 (três) requisitos utilizados para a aplicação da teoria da cegueira deliberada, conforme CALLEGARI e WEBER35:
1) O próprio agente cria barreiras ao seu conhecimento quanto à concorrência para a prática da conduta, ou seja, o agente deixa voluntariamente de obter representação plena acerca do fato;
2) O sujeito ativo tinha acesso às evidências ou provas que pudessem esclarecer a origem ilícita dos bens, de modo que este pudesse facilmente descobrir a prática do crime. Apesar disso, este não o fez;
3) Por fim, há o elemento subjetivo, que corresponde a intenção do sujeito ativo em manter-se sob a égide do estado de ignorância para proteger-se de eventual descoberta do delito, ou seja, o agente cria filtros evitando o conhecimento da prática dos atos infracionais.
Por derradeiro, insta salientar que a supressão realizada no artigo 1°, parágrafo 2°, inciso I, da lei 9.613, constitui hipótese de ampliação do âmbito de aplicação da lavagem de dinheiro, porque foram acrescidas as hipóteses de dolo eventual, quando da análise do elemento subjetivo do tipo.
Importante frisar que apesar do entendimento do Supremo Tribunal Federal no caso específico da Ação Penal 470, exacerbadas serão as discussões quanto à sua aplicação, em virtude da dificuldade na comprovação da eventualidade, e, mais do que isso, na comprovação dos requisitos cumulativos da cegueira deliberada.
Como na alteração citada nos capítulos anteriores, quis o legislador ampliar o rol de incidência da lei de lavagem de dinheiro, e acabou trazendo insegurança jurídica em virtude da ausência de certeza quanto à sua compatibilidade com o ordenamento jurídico pátrio.
4. O populismo penal midiático e o discurso do punitivismo: Contexto histórico e a influência dos meios de comunicação para a edição da Lei 12.683/12.
O termo populismo foi cunhado na década de 40, inicialmente para descrever medidas adotadas pelos governantes que atuavam exclusivamente com vistas à obtenção de popularidade, por meio da realização de medidas sem qualquer amparo em elementos capazes de comprovar a efetividade destas.
O populismo, comumente, está associado aos líderes carismáticos, em países onde há grandes problemas sociais, miséria e pobreza.
Tais medidas podem ser observadas em quase todas as áreas de atuação estatal, como, por exemplo, na distribuição de cestas básicas às comunidades carentes, em detrimento à realização de políticas educacionais ou de saúde, na construção de obras “faraônicas” sem qualquer utilidade social, entre outras.
Com o passar dos anos, a crescente massificação dos meios de comunicação, somada ao fenômeno social que se classificou como “sociedade de riscos” 36 , levou ao surgimento de uma nova modalidade de populismo, o populismo punitivo.
Essa modalidade de populismo tem suas bases em dois fatores, quais sejam:
- Os discursos de pânico e de medo, segundo os quais os índices de criminalidade e de violência são alarmantes. Estes discursos são difundidos, principalmente, através de alguns meios de comunicação de massa, o que caracteriza a sua vertente midiática;
- Os membros dos Poderes instituídos, especialmente, os membros do Executivo e Legislativo, aproveitando a sensação de insegurança criada pela propagação deste discurso do medo, e, sob o falso pretexto de solucionar esta situação, editam leis casuais, sem bases dogmáticas, em desacordo com critérios coerentes com preceitos político criminais, o que, na maioria das situações, redunda em legislações ineficazes, sem contar a clara incoerência destas com os preceitos constitucionais vigentes. O punitivismo penal.
Sintetizando: A violência desperta a atenção da população, o que torna a exploração de condutas criminosas algo rentável, em termos de números de audiência para os meios de comunicação, e, por conseqüência, o fato dos políticos “empunharem a bandeira” do combate a criminalidade acaba atraindo dividendos eleitorais, ou seja, rende votos.
A alteração operada à lei 9.613, de 1998, através da Lei 12.683, de 2012, é exemplo do exercício da atividade legislativa por “pressão” da imprensa.
Conforme já indicado nos capítulos anteriores, houve significativa ampliação do alcance da lei, o que, para muitos juristas 37 , levou à banalização do instituto.
Muitas críticas têm sido feitas ao projeto de lei aprovado pelo Congresso nacional, especialmente por setores ligados à advocacia 38 , afirmando que a nova lei não aderiu à terceira geração, mas estabeleceu a responsabilidade penal objetiva, pois, aquele que mesmo não tendo ciência da origem ilícita do bem, porém usufrui deste, estará incurso na prática do crime de lavagem de dinheiro.
Todas essas discussões já foram objeto de análise anteriormente, cabendo agora o tratamento específico quanto ao momento histórico e as circunstâncias que reverberam na alteração legislativa objeto do presente.
O maior erro do referido projeto de lei está nas circunstâncias momentâneas do país, uma vez que o próprio relator do projeto na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, o Senador José Pimentel, declarou que a aprovação do projeto era uma resposta necessária que a casa deveria dar a população em virtude das denúncias que motivaram a instauração da “CPI do Cachoeira”.
Ou seja, um dos responsáveis pelo projeto assumiu que este foi aprovado como forma de dar “uma resposta à sociedade” por conta de fatos que ainda estavam sob investigação.
No decorrer do trabalho há menção ao PLS 203/2001. Durante mais de uma década o Congresso Nacional não foi capaz de discutir e aprovar eventuais alterações à Lei 9.613, de 1998, contudo, foi capaz de fazê-lo de menos de 30 (trinta) dias, quando o tema passou a ser discutido pela população em geral, em virtude de um caso notório.
Cremos ser este um claro exemplo de populismo legislativo, pois, para se dar uma rápida resposta à sociedade, subjuga-se os princípios relacionados à dogmática penal e política criminal.
Independentemente do posicionamento quanto à (in) correção das mudanças perpetradas, cabe a reflexão a fim de exemplificar a utilização do discurso do medo como meio de obtenção de vantagens, sejam elas econômicas (os programas chamados de “policiais” estão entre os mais assistidos), ou eleitorais (os políticos utilizam o combate à violência como “bandeira eleitoral”).
O maior problema do populismo punitivo majorado pela mídia, a nosso ver, é a influência que o discurso do medo causa na população, especialmente naqueles que dispõem de menor acesso à informação.
Já em 1980, na obra intitulada “O livro dos Abraços”, no texto “Cultura do Terror 6/6”, Eduardo Galeano escrevera sobre a influência da mídia nos cidadãos, fato que apesar de relatado em um livro de contos, exemplifica com clareza a idéia central do presente.
Pedro Algorta, advogado, mostrou- me o gordo expediente do assassinato de duas mulheres. O crime duplo tinha sido à faca, no final de 1982, num subúrbio de Montevidéu.A acusada, Alma Di Agosto, tinha confessado. Estava presa fazia mais de um ano; e parecia condenada a apodrecer no cárcere o resto da vida.
Seguindo o costume, os policiais tinham violado e torturado a mulher. Depois de um mês de contínuas surras, tinham arrancado de Alma várias confissões. As confissões não eram muito parecidas entre si, como se ela tivesse cometido o mesmo assassinato de maneiras muito diferentes.
Em cada confissão havia personagens diferentes, pitorescos fantasmas sem nome ou domicílio, porque a máquina de dar choques converte qualquer um em fecundo romancista; e em todos os casos a autora demonstrava ter a agilidade de uma atleta olímpica, os músculos de uma forçuda de parque de diversões e a destreza de uma matadora profissional. Mas o que mais surpreendia era a riqueza de detalhes: em cada confissão, a acusada descrevia com precisão milimétrica roupas, gestos, cenários, situações, objetos... Alma Di Agosto era cega. Seus vizinhos, que a conheciam e gostavam dela, estavam convencidos de que ela era culpada.
- Por quê? – Perguntou o advogado.- Porque os jornais dizem.- Mas os jornais mentem – disse o advogado.- Mas o rádio também diz – explicaram os vizinhos. – E até a televisão!.
Conclusão
A Lei 12.683, de 2012, teve como principal escopo expandir o âmbito de aplicação dos crimes de lavagem de dinheiro.
Entre as diversas alterações, tanto materiais, como processuais trazidas pela referida legislação, merecem destaque a adoção de um rol amplo de condutas antecedentes e a aceitação do dolo eventual na conduta equiparada.
Conforme destacado no decorrer do trabalho, entre 03.03.1998 e 08.2012 o Brasil era partidário da segunda geração dos crimes de lavagem de dinheiro, significando que só configuram condutas antecedentes aqueles crimes expressamente consagrados nos 08 (oito) incisos do artigo 1°, da referida Lei.
Em agosto de 2012, em virtude da Lei 12.683, o Brasil passou a adotar a terceira geração dos crimes de lavagem de dinheiro, aceitando que qualquer infração penal (gênero, do qual são espécies os crimes e as contravenções penais) será considerada conduta antecedente para o cometimento da posterior ocultação ou dissimulação da origem ilícita dos bens, direitos ou valores.
Claramente percebe-se que houve o alargamento da possibilidade da imputação do crime de lavagem de dinheiro, através de uma lei confeccionada sem critérios certos, determinados e fundamentados.
A principal consequência desta alteração desarrazoada será, inicialmente, a vulgarização do crime de lavagem de dinheiro, através da sua imputação sem critérios, independentemente da ofensividade causada pela conduta antecedente.
E a consequência dessa vulgarização será o recrudescimento da imputação quanto ao cometimento do crime de lavagem de dinheiro, porque os tribunais, após inúmeras decisões afastando a aplicação da lei, chegarão ao entendimento que este alargamento serviu somente para revelar as imperfeições da referida lei.
Outra alteração diz a respeito à aceitação quanto ao cometimento de conduta equiparada a lavagem de dinheiro através do dolo eventual. Essa conclusão decorre da omissão do legislador quanto ao termo “que sabe ser” de origem ilícita.
O não emprego deste termo decorre do entendimento que, quando o sujeito ativo da lavagem de dinheiro, mesmo não tendo anuído expressamente a esta conduta, mas tendo condições de perceber a origem ilícita do bem, e mesmo assim realiza o ato que leva a ocultação ou dissimulação, haverá a consumação do crime.
Portanto, basta à previsibilidade da produção do resultado, a assunção na produção deste, e a indiferença em relação a esta, para que haja a imputação do crime.
A fim de aperfeiçoar a utilização do dolo eventual neste caso, a doutrina e a jurisprudência fazem menção a teoria da cegueira deliberada, onde, resumidamente, o agente cria obstáculos com vistas a aparentar sua total desinformação em relação a origem ilícita do bem.
Por fim, essa expansão do âmbito de aplicação da lei de lavagem de dinheiro foi motivada pela “CPI do Cachoeira”, que em meados de 2012 investigava atos praticados pelo controlador do jogo do bicho na região centro – oeste do Brasil, e a suas ligações com membros dos 03 (três) poderes constituídos.
A comissão parlamentar de inquérito terminou sem que fatos relevantes fossem apurados, fazendo com que os parlamentares, após pressão dos meios de comunicação, fossem instados a produzir uma resposta à sociedade.
Essa “resposta” foi dada através da inserção da exploração do jogo do bicho no rol de condutas antecedentes da lavagem de dinheiro, assim como todas as outras contravenções penais, sem que o legislador estabelecesse qualquer critério.
Mais uma vez, o discurso do punitivismo prevaleceu em matéria de criação legislativa. Mais uma vez a derrota será da aplicação sensata e consciente do Direito Penal.
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